Os Mestres do Jazz, Lucien Malson
Uma das características do Jazz, assinalada por todos os estudiosos, é que ele é música de indivíduos, no sentido em que cada músico marca com a sua personalidade a música que interpreta. Já observámos nos livros de Rex Harris e Hughes Panassié o espaço que eles dedicam às personalidades, com capítulos inteiros dedicados aos grandes nomes do Jazz, e essa individualidade haveria de resultar na publicação de inúmeras biografias e autobiografias.
O Jazz é uma música simultaneamente individualista e colectiva; todos os observadores o assinalam. Ao contrário da música clássica, onde o maestro espera que o músico toque exactamente o que está na pauta, de acordo com a sua interpretação, no Jazz cada intérprete tende a adicionar a sua personalidade musical ao colectivo, resultando em que nenhum intérprete o é simplesmente. No caso paradigmático das orquestras de Duke Ellington, por exemplo, o director estimulava a criatividade e a individualidade dos seus músicos, e mesmo a escolha dos músicos era feita em função das suas personalidades musicais. Uma das mais fortes personalidades do Jazz escolhia os músicos da sua orquestra em função das suas personalidades! Mas em qualquer combo, não é igual escolher um ou outro músico, porque cada um não se limita a interpretar a pauta e a seguir a batuta, mas acrescenta a sua forma de tocar, a sua personalidade. Claro que nas inúmeras orquestras e grupos que fizeram e fazem a história do Jazz, muitos músicos não lograram passar do relativo anonimato, mas basta falar com qualquer amante de Jazz para perceber como ele é capaz de citar os nomes dos músicos que integram qualquer banda, como encontram diferenças na alteração ocasional de um ou outro membro.
Todos os autores falam de improvisação colectiva, no sentido em que cada músico ouve o que cada outro toca e toca e responde-lhe em função disso, num jogo de conflito e estímulo permanente. Em nenhuma outra música isto se passa; o Jazz é a música colectiva e individualista por excelência.
Poderemos observar, de igual forma, como alguns intérpretes transformaram as composições alheias, verdadeiramente apossando-se delas, de tal forma que se torna difícil ouvir os originais.
Como escrevi, todos os estudiosos assinalaram esta característica do Jazz, concluindo, de forma mais ou menos assumida, que alguns músicos transformaram o Jazz e a sua história. Um dos capítulos do Jazz de Rex Harris é dedicado aos pioneiros do Jazz – Manuel Perez, Buddy Bolden, Freddy Keppard e Kid Ory, e outro aos «Grandes Individualistas», Louis Armstrong, Sidney Bechet e Jelly Roll Morton, de forma semelhante ao que no livro de Panassié, Armstrong e Duke Ellington merecem capítulos destacados ou até, no pequeno livro de divulgação da Marabu – Ellington e Armstrong - de que falei na semana passada. E porque a personalidade musical é afectada ou determinada pela própria vida – Jazz é sinónimo de vida, soe dizer-se – as biografias combinam e mesmo confundem amiúde os factos musicais com as atribulações da vida dos músicos de Jazz.
Este verdadeiro «culto de personalidade» estimulou o surgimento de biografias, também em Portugal, de tal forma que algumas «Histórias do Jazz», parecem ser apenas a história dos músicos, sendo que eu diria que essas duas histórias não são incompatíveis.
Surgido ainda antes do 25 de Abril, em 1968, Os Mestres do Jazz, tradução do livro de Lucien Malson da colecção francesa Que Sais-Je é o primeiro livro de biografias publicado em Portugal, a que se sucederiam outras. Les Maitre du Jazz é o primeiro livro de Malson, original de 1952, que haveria de ter inúmeras actualizações e edições. Ao que se pode ler no prólogo, a edição portuguesa é a tradução de uma versão de 1965.
Numa primeira parte, Lucien Malson procura em apenas algumas páginas contar a história do Jazz, desde as origens na América à disseminação pelo mundo, e defini-lo, nas suas características – oito páginas apenas: no tratamento do som e na valorização específica do ritmo; partindo para as biografias de alguns dos músicos que fizeram o Jazz até aos anos 50 do século XX, numa escolha que atravessa o Jazz de New Orleans ao início do cool, contemplando a diversidade numa escolha limitada, mas curiosa: os dois primeiros grandes solistas – King Oliver e Louis Armstrong –; o representante maior das orquestras de Jazz, assinalando também a introdução da escrita e dos arranjos no Jazz na sua forma mais acabada – Duke Ellington; o primeiro grande saxofonista do Jazz – Coleman Hawkins – e o mais caloroso dos tenores do Jazz clássico, Lester Young; o superlativo do bebop e um dos maiores saxofonistas da história – Charlie Parker; a figura ímpar da música que foi Thelonious Monk; e a personalidade inquieta de Miles Davis, cuja história ainda teria muito para contar. Oito músicos apenas, onde a vida e o Jazz se cruzam e confundem, em apenas cento e sessenta páginas, numa história já cheia por essa altura, e onde cada amante de Jazz assinalará as inúmeras ausências.
Desaparecido em Fevereiro deste ano com noventa anos de idade (teria feito ontem, catorze de Maio, noventa e um anos) Lucien Malson foi uma figura central na divulgação do Jazz em França e na Europa na segunda metade do século XX, e mereceria também ele a sua história contada. Mestre em filosofia, pedagogo, antropólogo, seria conhecido também fora do Jazz pelo polémico livro Les Enfants sauvages (As crianças selvagens, mito e realidade, Livraria Civilização, 1988), que haveria de inspirar o filme de François Truffaut, L’enfant sauvage.
Como crítico e divulgador de Jazz, Lucien Malson destacou-se na escrita nos Cahiers du Jazz, mas também na Jazz Hot, na Jazz Magazine, no Le Monde e em inúmeras outras publicações e em diversos livros: Le Jazz moderne, 1960, Histoire du jazz, 1967, Des musiques de jazz, 1983, e outros; em seu nome ou em colaboração com outros como André Hodeir, para além dos livros sobre pedagogia; sendo de assinalar a sua actividade radiofónica ao longo de quatro décadas.